Em que creem os que não creem - Umberto Eco; Carlo Maria Martini

“Quando qualquer autoridade religiosa de qualquer confissão se pronuncia sobre problemas concernentes a princípios da ética natural, os leigos devem reconhecer-lhe este direito: podem concordar, ou não concordar com sua posição, mas não têm nenhuma razão para contestar-lhe o direito de expressá-la, mesmo como crítica ao modo de viver do não-crente.  Os leigos têm razão para reagir apenas em um caso: quando uma confissão tende a impor aos não-crentes (ou aos crentes de outra fé) comportamentos que a lei do Estado ou de suas religiões proíbem, ou a proibir-lhes outros que a lei do Estado ou de suas religiões, ao contrário, permitem.”

“Jesus disse que era preciso pagar o tributo a César, pois o ordenamento jurídico do Mediterrâneo apontava nesse sentido, mas isso não significa que um cidadão europeu tenha, hoje, o dever de pagar taxas ao último descendente dos Habsburgo.”

“E não se preocupe se alguns dizem que falamos difícil: eles poderiam ter sido encorajados a pensar fácil demais pela 'revelação' da mídia, previsível por definição. Que aprendam a pensar difícil, pois nem o mistério, nem a evidência, são fáceis.”

“Devemos, antes de tudo, respeitar o direito da corporalidade do outro, entre os quais o direito de falar e de pensar. Se nossos semelhantes tivessem respeitado esses 'direitos do corpo' não teríamos tido o massacre dos Inocentes, os cristãos no circo, a noite de São Bartolomeu, a fogueira para os hereges, os campos de extermínio, a censura, as crianças nas minas, os estupros na Bósnia.”

“A dimensão ética começa quando entra em cena o outro.”

“Ético é o homem que, de boa-fé, não ama; não-ético é o homem que ama porque, apesar de sua convicção de não amar, quer evitar a desaprovação social.”

"A história da Igreja, junto com os infinitos atos de fé e bondade, é tecida intimamente pela violência dos clérigos e das instituições por eles dirigidas. Sempre se poderia dizer que todas as instituições humanas e os homens que as administram – mesmo os ministros de Deus – são suscetíveis de falhas e seria verdade. Mas o que se pretende discutir aqui é outra e mais importante questão: não existe ligação com o Absoluto que tenha podido impedir a relativização da moral; queimar uma bruxa ou um herege não foi considerado pecado e menos ainda crime durante quase a metade da história milenar do catolicismo; ao contrário, essas crueldades que violavam a essência de uma religião que havia sido fundada no amor, eram realizadas em nome e sob a tutela desta mesma religião e da moral que deveria fazer parte dela intrinsecamente. Repito: não estou desenterrando erros e até crimes que hoje – mas só hoje – a Igreja já admitiu e repudiou; estou simplesmente afirmando que a moral cristã, eminentíssimo cardeal, ligada ao Absoluto que emana do Deus transcendente, efetivamente não impediu uma interpretação relativizante da própria moral. Jesus impediu que a adúltera fosse lapidada e sobre isso edificou uma moral baseada no amor, mas a Igreja fundada por ele, mesmo sem negar esta moral, interpretou-a de uma maneira que levou a verdadeiros massacres e uma cadeia de delitos contra o amor. E isto não apenas em casos esporádicos ou por algum erro trágico de pessoas isoladas, mas com base em uma concepção que guiou o comportamento da Igreja durante um pouco menos de um milênio. Concluo sobre este ponto: não existe ligação com o Absoluto, não importa o que se queira entender por esta palavra, que evite a mutação da moral segundo os tempos, os lugares e os contextos históricos nos quais uma vivência humana se desenvolve."

"Pessoalmente desconfio daquele Absoluto que dita mandamentos heteronômicos e produz instituições incumbidas de administrá-los, sacralizá-los e interpretá-los. (...) Por isso, deixemos de lado as metafísicas e as transcendências se quisermos reconstruir juntos uma moral perdida; reconheçamos juntos o valor moral do bem comum e da caridade no sentido mais alto do termo; pratiquemo-lo profundamente, não para merecer prêmios ou escapar de castigos, mas simplesmente para seguir o instinto que provém da raiz humana comum e do código genético comum que está inscrito no corpo de cada um de nós."

“Quem não se recorda do aforismo de Bernard Shaw: ‘Não faça aos outros aquilo que gostaria que fizessem a ti. Eles poderiam não ter o mesmo gosto’.”